A comparação pode parecer meio esdrúxula. Mas é que me sinto sempre muito afetada pela força que as pessoas demonstram ter quando estão juntas por uma mesma causa.

No caso da Copa, à exceção das legítimas pontuações sobre excessos de gastos públicos para algumas obras que não deixarão, de fato, legado à população, todo o mundo pensa mesmo é em torcer, comemorar, se emocionar ao ouvir o hino cantado à capela. No caso do embargo da hidrelétrica que, segundo ativistas ambientais, iria inundar milhares de árvores e vales inteiros da Patagônia, há menos consenso. Mas as manifestações incansáveis nas ruas da capital, Santiago, por mais de dois anos, foram capazes de sensibilizar o poder executivo chileno.

Nesse desfecho, porém, um detalhe deixa apreensão: mesmo entre os que comungam da causa ambiental há aqueles que estão preocupados com a decisão. Assim que saiu a notícia do embargo da obra, no dia 10 de junho, entrei em contato com alguns amigos chilenos. Perguntei a um deles, o historiador Sebastián Vielmas, se a decisão governamental tinha o apoio da maioria. Sim, ele me disse, “é uma grande vitória dos movimentos sociais”.

“Mas o problema é que a mineração ainda tem muita necessidade de energia e, possivelmente, muitas usinas a carvão serão construídas no norte do país. O conflito ambiental ficará por lá agora”, disse-me ele.
O uso de fontes alternativas de energia seria a solução. No entanto, como se sabe, ainda não há como garantir essa produção em escala.

Mas, vamos aos fatos: em agosto de 2007, a empresa HidroAysén apresentou um projeto para a construção de cinco centrais hidrelétricas na região da Patagônia e, um ano depois, mostrou o Estudo de Impacto Ambiental à Comissão Regional de Meio Ambiente chilena. Trinta e dois dos 36 órgãos públicos encarregados de avaliar o estudo deram seu parecer atestando inconformidade com vários aspectos.

A empresa recorreu e conseguiu ter o projeto aprovado em maio de 2011 na gestão do então presidente, o empresário Sebastián Piñera. A partir daí começaram os protestos de rua em todo o país, impulsionados pelas pessoas que seriam atingidas pelas barragens. Um desses protestos chegou a levar mais de trinta mil pessoas para a frente do palácio presidencial de La Moneda, segundo o jornal online “El Mostrador”. Até que, no dia 10 de junho, o governo da presidente Michelle Bachelet decidiu engavetar a obra, que seria tocada pela espanhola Endesa e pela chilena Colbún. Fontes oficiais informaram que a decisão foi tomada por causa do impacto ambiental do empreendimento que acrescentaria, se fosse levado adiante, 2.750 megawatts aos 17 mil gerados atualmente em todo o país.

A empresa ainda pode ajustar seu projeto ou continuar a batalhar juridicamente para conseguir realizá-lo. Ao site da BBC, o CEO da HidroAysén Daniel Fernandez disse que a decisão fez com que o país virasse as costas à energia hidrelétrica, para ele “a única verdadeira solução para a dependência contínua de combustíveis fósseis”. Ele disse ainda que os movimentos ambientalistas foram responsáveis para que Aysén, uma das mais remotas e menos desenvolvidas áreas do país, perdesse uma chance de progredir.
Volto a Gabriel Tarde. A leitura de seu “A opinião e as massas” (Ed. Martins Fontes) estimula uma reflexão, sobretudo porque estamos na era das incertezas, dos grandes riscos.

Diz Tarde que “deve-se evitar a intolerância prodigiosa, o orgulho e a suscetibilidade nascidos da ilusão de onipotência criada pela multidão”. Cabe como uma luva na questão chilena. Sem dúvida, os movimentos sociais e ambientalistas do país deram um grande passo, mas é preciso, mais do que nunca, que se organizem para oferecer outras soluções. Se, de fato, a alternativa for construir termelétricas em outro canto do país, considerando que o carvão é, de longe, a fonte que mais emite CO2, segundo os cientistas, isso não será nada bom. É preciso ponderar, alerta o filósofo.

Mas, como fazer isso se, como lembra Tarde, nos públicos e nas multidões, “o espírito de ponderação se perde cada vez mais”? “Exaltam-se ou depreciam-se pessoas e obras com a mesma precipitação”.
Ah, sim! E aqui eu descubro a ligação com aquele pensamento que comecei a construir no início do texto. Também na Copa há esta precipitação. A condenação ao mundo dos infelizes e derrotados está muito próxima da sagração à vitória e ao pódio dos vencedores, dos heróis. Sem moderação.

“Nisto, tanto públicos como as multidões lembram um pouco os alcoólatras. E, de fato, a vida coletiva intensa é, para o cérebro, um terrível álcool”, diz Tarde.

Para o sociólogo, há uma nítida diferença entre “públicos” e “multidões”, embora as duas palavras signifiquem agrupamentos humanos. A invenção da imprensa, na idade moderna, fez nascer a imagem do público, “indivíduos fisicamente separados e cuja coesão é inteiramente mental”. Já a multidão é o grupo social do passado, depois da família, o mais antigo. E depende da voz de um líder para permanecer, ao contrário do público, que se une e age em torno de ideias. “É impossível negar que ele seja o grupo social do futuro”.

Estamos assim, pois, vivendo esta era do público, já que sempre estamos unidos em torno de uma causa, quer seja o fim de uma obra polêmica, ou a vitória de um time. As redes sociais virtuais, criação que Tarde nunca pôde imaginar, colaboram ainda mais para este fenômeno.

Se, por um lado, qualquer aglomerado torna mais fácil o perigoso divórcio com a singularidade, por outro, também estimula grandes vitórias, como a chilena. Tarde lembra, no fim de seu estudo sobre o público, que é só por serem fortes e sólidas que as montanhas se preservam de serem devastadas e transformadas em vinhedos ou clareiras: “Não por algum sentimento dos serviços prestados por esses reservatórios naturais”, afirma ele.

A resistência é possível pela união, portanto. Mas essa união precisa de um norte, de uma organização, se o objetivo é mais do que espocar fogos por uma vitória ao fim do jogo de futebol. É o que nos deixa a refletir o ganho dos movimentos ambientalistas no Chile. Hora de juntar forças para pensar em projetos que garantam energia sem depredar o meio ambiente. Se é com a expertise de corporações que se vai conseguir isso, então que seja de igual para igual a negociação.